sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Uma postagem meio grande, mas necessária.



O que vem a seguir é um textículo que preparei para o congresso da Abrates em Porto Alegre, em 2010. A postagem ficou um pouco grande, reconheço, mas achei necessário por o texto aqui, por representar, em linhas gerais e bem abrangentes, o que penso. Não alterei nenhuma linha do trabalho originalmente entregue. Vamos a ele.




O Traduzir e a Tradução de Máquina: 

Mercado, Ética e Expropriação de Conteúdo On-line.


Introdução

            Este trabalho não pretende discutir as sendas e meandros da tradução de máquina como técnica, nem mesmo o interesse que desperta, como ciência, naqueles que discutem sua relação com os objetos da linguística tradicional, da neurolinguística ou da ciência da computação. Trata-se, apenas, de uma organização de ideias sobre atenções e responsabilidades, principalmente as de natureza ética, mercadológica e comercial, que cada tradutor profissional deve considerar ao lidar com questões envolvendo o uso ou não de ferramentas de tradução de máquina, especialmente aquelas no formato on-line.
            Tampouco pretende este trabalho ser professoral, está longe disso. Sua intenção é chamar a atenção para questões que, na opinião de seu autor, são fundamentais e estão sendo deixadas de lado por aqueles que renegam ou lidam mal com a realidade da tradução de máquina, seja tratando-a como algo "para o futuro" ou usando-a descuidadamente em sua forma on-line na pretensão de agilizar suas atividades.

Uma realidade a ser entendida

Um pouco de história
            Quase todas as atividades profissionais, pelo menos aquelas que gratificam o bolso e o espírito, têm sua cota de arte e técnica e com a tradução acontece o mesmo. Apesar de sua característica de atividade quase artesanal, a tradução desempenha, hoje mais que nunca, papel fundamental nas práticas de mercado globais e, por mercado, entenda-se comércio, em todos os seus níveis e com todas as suas exigências e interesses. Sendo assim, e sendo o mercado eminentemente prático em suas pretensões, é consequente que a evolução das técnicas e da tecnologia de tradução seja ditada principalmente pelo que o mercado exige da tradução, isto é, que seja ágil, precisa e de baixo custo – exigências feitas não necessariamente nessa ordem, mas feitas sempre.
            Ao ser apresentada ao mundo, ainda incipiente como tecnologia, em meados dos anos de 1950 – embora a concretização de seu conceito já fosse buscada por pesquisadores havia dois ou três séculos –, a tradução de máquina veio como solução para atender, no curto prazo, essas três exigências. O curto prazo, todavia, se alongou, já que ferramentas de MT – Machine Translation, vamos chamar a técnica assim, por ser um padrão e por economia de caracteres – mostraram-se por demais brutas e de produção custosa. Custo, aliás, talvez tenha sido o fator que mais retardou a evolução da MT, já que o mercado nada globalizado daqueles primeiros tempos achou desnecessário investir em algo para que não via muita utilidade em termos de retornos comerciais. A MT ficou restrita, portanto, e por bastante tempo, ao âmbito das universidades, dos institutos de pesquisa e de determinadas entidades governamentais, notadamente as de informação – ou de "inteligência", como querem alguns.
            A partir de meados dos anos de 1980, com a evolução do mercado mundial em direção à globalização, o interesse pela MT se reacendeu. Investimentos foram e estão sendo feitos para que ferramentas de tradução automática se tornem viáveis e práticas o mais depressa possível, já que, num mundo cuja economia depende, entre outras coisas igualmente importantes, da fluência econômica de um mercado internacionalizado, fluência de comunicação é essencial, pois, se informação é ouro, falta de comunicação é entrave ao lucro.

Um pouco de hoje
            Desde que passou a ser considerada, primeiro, importante e, depois, essencial para a fluência da economia mundial, a tradução e seus profissionais se tornaram objeto de pressões cada vez maiores e mais frequentes por produtividade. Nesse contexto de premência, o uso de ferramentas computacionais pelo tradutor para o exercício de seu ofício tornou-se fundamental.
            As ferramentas computacionais de auxílio à tradução, ou ferramentas de CAT – Computer Aided Translation – como são comumente conhecidas, foram inicialmente recebidas com alguma desconfiança e resistência, mas hoje são indispensáveis para que os tomadores de serviços de tradução – nossos clientes – tenham suas necessidades satisfeitas e os fornecedores de serviços de tradução – nós, tradutores – permaneçam atraentes e competitivos. As ferramentas de memória de tradução, ou TM – Translation Memory, superaram rapidamente um período inicial de descrença e hoje são populares. Já as ferramentas de tradução de máquina, ou MT – Machine Translation, todavia, embora sendo objeto de desejo do mercado tomador, seguem um caminho menos ágil para ganhar os "corações e mentes" dos profissionais de tradução, seja pelas dificuldades de desenvolvimento e emprego que lhes são inerentes, seja pela resistência que a MT encontra entre nós, por ser vista como algo que nos substituirá e relegará ao limbo.
            A lentidão da caminhada das ferramentas de MT, a que nos referimos anteriormente, passa para muitos a impressão de que seu emprego é algo para o futuro. Quem pensa assim, engana-se. A tradução de máquina já é realidade e afeta nossa vida profissional hoje. Algumas grandes empresas, como a Xerox, e entidades políticas de ingerência global, como a União Europeia, dedicam esforços e fundos consideráveis à criação de um ambiente produtivo e lucrativo para as MT. Mesmo em níveis menores, como o das agências de tradução, já há procura de profissionais interessados em trabalhar como editores de produtos de tradução de máquina e essa procura se intensifica ano a ano. A caminhada das MT é lenta, sim, mas inexorável, e o crescimento constante de sua presença entre nós é, também, um fato.
            Isto posto, como lidar, então, com essa realidade? Na opinião de alguns, inclusive deste autor, a melhor maneira de fazê-lo é tratar as ferramentas de MT como o que são, uma evolução de nosso ofício e uma oportunidade para que nos transformemos em profissionais renovados e, a bem da verdade, diferentes. Entretanto, como toda técnica "nova", o uso das MT implica cuidados de diversas naturezas, sendo eles profissionais, éticos e comerciais, e que não vêm recebendo a atenção que merecem.

Os cuidados que a realidade da MT implica

            Embora a MT como tecnologia de tradução seja presente e inescapável, isso não significa que não tenhamos que lidar com ela de modo consciente e atento ao que seu uso implica. O crescente interesse comercial na tecnologia, tanto por parte de tomadores quanto de fornecedores de tradução, pode fazer com que nós, tradutores, deixemos de lado questões importantes não só do ponto de vista do mercado como do próprio futuro de nossa profissão.

Cuidados profissionais
            É verdade que o uso da MT pode ser de grande ajuda para que os tradutores façam frente aos enormes desafios de prazo e produtividade que sua clientela impõe. No entanto, o uso indiscriminado e desatento dessas ferramentas, pode, no curto prazo, ser mais danoso para nossa profissão do que a ferramenta em si, já que o mercado – que se interessa por resultados, não pela técnica – poderia entender esse procedimento como um sinal de que, já que quem traduz é a máquina, a intervenção humana, seja de um tradutor ou de um editor, é mínima e, portanto dispensável.

Cuidados éticos
            Entre outros cuidados a serem postos em prática, é preciso lembrar que o uso de ferramentas de CAT, não só MT mas também TM, promove a geração de grandes bases de dados de informações, com uma porção significativa originada de fontes cujos interesses são conflitantes. Assim, o uso de conteúdos gerados por essas fontes deve receber atenção escrupulosa para que não resvale para a divulgação de informações de natureza técnica ou comercial sigilosa, em prejuízo de todas as partes envolvidas em um projeto de tradução.

Cuidados comerciais
            Impressiona que, apesar de todas as fontes de informação disponíveis e todos os indicativos do mercado em que circulamos, ainda haja tradutores que tratem a tradução como trabalho de artesão, quase um sacerdócio. Muito ao contrário. Precisamos lembrar sempre que o setor de tradução e localização movimenta cifras significativas, da casa dos bilhões de dólares, e vem experimentando crescimento contínuo ano após ano, crescimento que nem mesmo a crise econômica, que se abateu sobre o mundo em tempos recentes, interrompeu. Com isso, é natural que tenha atraído a atenção de grandes empreendimentos, interessados em auferir uma parte desses bilhões. O que não é natural, contudo, é que haja tantos tradutores dispostos a ajudá-los nesse intento, de graça e em prejuízo de sua própria atividade. Cada vez que um tradutor usa uma ferramenta de tradução on-line, seja de MT ou TM (Google Translator Kit, Babel Fish, e congêneres), está abastecendo uma base de dados de terceiros sobre a qual não tem o mínimo controle, de cujos direitos sobre conteúdo abriu mão graciosamente (vide a EULA do Google) e que fatalmente virá a ser transformada em um produto posto à disposição de um mercado ansioso por reduzir custos. Além disso, o uso de ferramentas de tradução on-line representa não somente expropriação de conteúdo, mas a prática de crowdsourcing vil, que não só faz uso do trabalho gracioso de tradutores, como impede que profissionais de tradução, revisão e edição participem justamente de um processo e sejam devidamente renumerados por isso. Alie-se isso aos efeitos comerciais da mera suspeita de violação de ética enleada no uso de MTs on-line e teremos um quadro nada auspicioso para a atividade de traduzir.
            Pelo visto, é, portanto, crucial que cada profissional de tradução analise cuidadosamente sua opção de usar ferramentas de CAT on-line como auxílio de produção em detrimento do investimento em ferramentas off-line que poderiam, estas sim, beneficiar seu trabalho no médio prazo e ajudá-lo em um momento crítico profissional de transição.

Conclusão

            Apesar de vista como ameaçadora por muitos, a tecnologia de Tradução de Máquina, longe de representar um perigo, é uma evolução que deve ser bem-vinda na vida de quem lida com a transposição de documentos entre idiomas, já que, para permanecerem no mercado, tradutores — então mais "post-editors" que tradutores — precisarão aprimorar seus conhecimentos das línguas e das técnicas com que trabalham, o que resultará, no médio prazo, em produtos de mais qualidade oferecidos ao mercado consumidor de traduções.
            Contudo, o uso cada vez mais disseminado e indiscriminado das ferramentas de tradução on-line entre tradutores, além de reduzir notadamente a qualidade dos trabalhos oferecidos ao mercado, aumenta o preconceito contra novas tecnologias e técnicas de tradução — principalmente aquelas que envolvem tradução de máquina — e acelera anormalmente o processo de substituição dos tradutores humanos por "tradutores virtuais" por expropriação de conteúdo, daí ser imperiosa uma discussão do uso de ferramentas on-line de tradução, suas responsabilidades e consequências intrínsecas e do que realmente representam para o futuro (ou não) de nossa profissão

3 comentários:

  1. Excelente artigo. Estava ansiosa para ler sobre o assunto e estou muito satisfeita com o desdobramento da proposta. É um debate necessário e, se bem entendi, ainda carente de maior atenção. Espero que deixemos nossos preconceitos e emoções de lado e comecemos a ser mais racionais, vendo essas e outras ferramentas como mais uma forma de auxílio à tradução, sem esquecer que, claro, como em qualquer outro ofício, há seus vícios e prejuízos, os quais devem ser combatidos. Quanto ao uso racionado de traduções por determinadas partes em benefício próprio, falei sobre o caso do Translation Cloud (http://ecos-da-traducao.blogspot.com/2011/11/translation-cloud-um-caso-se-pensar.html) que, confesso, me deixou muito irritada devido à maquiagem que aparentemente aplicam às suas verdadeiras intenções. Hoje me deparei com outro caso, que me parece ser algo similar, mas enfim...Desejo vida longa ao blogue! um abraço, Janaina

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  2. Jana, uma das razões de ser deste blog é tentar ajudar todos nós a conhecer os efeitos da associação cada vez maior do uso de ferramentas de produtividade (principalmente a MT, mas não somente ela) com a definição do que seja um tradutor profissional, ou pelo menos um tipo de tradutor, e evitar justamente, entre outras coisas, que indivíduos malandros como o sujeito do Translation Cloud, que não têm nenhum compromisso com a atividade, mas somente com o faturamento, aproveitem da ignorância alheia, tomem as rédeas da situação e deturpem a coisa toda, exatamente como fizeram com as ferramentas de TM. Abraços!

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  3. Maravilha, esse tipo de informação é bastante útil e necessário! Vou acompanhar sempre e divulgar. Abraços!!

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