Antes de tudo, peço desculpas pelo longo intervalo entre esta postagem e a anterior, quem milita na tradução sabe que não foi por descaso, mas às vezes a gente fica tão assoberbada... Por favor, relevem, mesmo porque acontecerá outras vezes.
Bom, voltando à bovina com baixa temperatura corporal, qual seja, nossa relação com as ferramentas de tradução, especialmente as MTs e TMs da vida, hoje me deu vontade de comentar a pasteurização das traduções. Tudo a ver, aliás, com a vaca ali no início do parágrafo.
Sempre acreditei, e continuo a acreditar, que um dos trunfos do profissional autônomo é poder e saber impor sua marca pessoal ao produto de seu esforço dentro dos parâmetros que recebe de seu cliente. Algo como um marceneiro que recebe a encomenda de um armário, com essas e aquelas medidas, a ser usado para isso e aquilo e que, por um jeito todo seu de usar uma talhadeira ou uma plaina, consegue produzir um móvel que, na finalidade, é um armário como os outros, porém com uma identidade em sua produção que o torna único e, de preferência, associável a quem o produziu.
Essa identidade entre produto e produtor vale, também, na tradução. Qual é tradutor experiente, que já anda no mercado há algum tempo, que não tem pelo menos um cliente que lhe seja fiel justamente pelo modo como elabora uma frase, como prepõe ou pospõe adjetivos ou advérbios, ou como hidrata e viça o mais árido e escanifrado dos textos? E vejam bem, não estou falando só do tradutor literário, falo dos não literários principalmente. Acreditem, tem gente por aí que consegue transformar a tradução de um balanço patrimonial ou de um manual de separador de água e óleo em algo agradável de ler. Conheço alguns.
Pois no fazer tradutório, é justamente a identidade entre tradutor e tradução que o uso indiscriminado das ferramentas de tradução automática, principalmente aquelas de uso público, mais ameaça. Por serem voltadas essencialmente para a produção, ferramentas de MT se prestam, e muito bem, ao uso simultâneo por uma multitude de tradutores (aliás, dependem disso), que devem abrir mão de sua personalidade tradutória em função da personalidade da máquina (ou da falta dela) para que o produto final de seu esforço seja considerado bom. Como resultado, minha tradução, a sua e a do colega ali da esquina ficam com a mesma carinha. Ou ficam, pelo menos, muito parecidas. Sendo assim, no dia em que todos nós estivermos usando ferramentas como o Google Translate como motor nossa atividades, o que restará ao cliente para diferenciar a minha tradução da sua, ou daquela do colega ali da esquina?
Você, querido ou querida colega, que traduz profissionalmente como eu, acabou de ter um arrepio na espinha, não foi? Pois é. Se hoje os preços têm tirado nosso, imaginem como será quando, devido a seu uso indiscriminado e cego, promovido irresponsavelmente por muitos (inclusive por aqueles que, por autopreservação, deveriam ser mais cuidadosos), a MT se tornar tão massificada, no pior sentido da palavra, que tudo o que teremos a oferecer aos nossos clientes, diretos ou não, será um preço mais baixo que o concorrente ao lado. Aí sim, será mesmo, para todos os efeitos da tradução profissional, o fim.
Quem me conhece sabe que, em relação às ferramentas de tradução automática, de catastrofista não tenho nada. Ao contrário, vejo-as como oportunidade de novos ares para nossa profissão que, apesar do oba-oba econômico com que andam a cercá-la, como atividade está um tanto combalida. Mas não podemos descuidar. Se formos na conversa dos que somente querem vender ao invés de responsavelmente promover essa nova realidade profissional, ou nos deixarmos seduzir pelo volume que a ferramenta de tradução automática pública (leia-se online) é capaz de produzir, caminharemos a passos largos para a pasteurização da tradução. Seremos, de fato, como as vacas. Cada uma produz um leite com sabor peculiar, mas na caixinha, depois da pasteurização, fica tudo aguado mesmo.
Certamente que, em muitas situações, a pasteurização da tradução é necessária e deve ser buscada. Mas não podemos deixar que venha a ser encarada como norma, nem contribuir para isso com nossa passividade ou omissão.
Cuidem-se, leiam, informem-se, duvidem dos arautos nímbicos que, das nuvens, clamam pelo esforço barato de uma multidão de tradutores obscuros, sem se preocuparem com outra consequência que não seja o número de dígitos no saldo bancário. Façamos a eles e a nós mesmos a pergunta que nossa coleguinha, em outras palavras, faz ali em cima, "o que é que eu levo nisso?". E na resposta é bom que consideremos não só os valores que podemos ganhar hoje, mas se nossas escolhas permitem que nossa profissão, mesmo transformada, sobreviva, e que permaneçamos indivíduos identificáveis, produzindo algo que nos diferencie uns dos outros e reflita o profissional que cada um de nós é.
Vaquinhas? Podemos até ser. Mas de presépio, nunca. Mú procêis!